A nova geração de pesquisadores de gênero e sexualidade

Aos 15 anos, Fabrício Pupo demonstra maturidade ao lidar com os temas e desponta como um dos pesquisadores mais jovens do país

Natural de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, Fabrício Pupo tem se destacado como aluno do primeiro ano do Ensino Médio, bolsista ICJ/CNPq. A bolsa de iniciação científica júnior tem objetivo de despertar a vocação científica e incentivar talentos potenciais entre estudantes do ensino fundamental, médio e de educação profissional da Rede Pública, orientados por pesquisador qualificado. Iniciado cedo no mundo da pesquisa e trafegando por diversas áreas, Fabrício demonstra habilidade ao falar sobre temas relacionados aos gêneros e sexualidades e cria iniciativa pioneira de escuta de pessoas trans em sua escola: o projeto TransEscola. Tudo começou a partir de situações testemunhadas em sala de aula e do contato do jovem pesquisador com a obra A garota dinamarquesa, de David Ebershoff, de quem ele se tornou amigo.

Marcelo de Trói: Como surgiu seu interesse pela pesquisa?

Fabrício Pupo: A escola que eu estudei no ensino fundamental tinha a proposta de trabalhar Iniciação Científica com os alunos, então a atividade era desenvolver um projeto de pesquisa a partir de um problema constatado na escola ou comunidade. Na minha sala, tinha um colega que todos consideravam gay, pelo jeito efeminado dele performar. E em determinado momento ele passou a namorar uma outra colega de sala, uma menina cis e isso causou uma grande confusão na turma. Todos curiosos com o fato de o “menino gay” agora estar namorando uma menina.

Nesse mesmo período o filme A garota dinamarquesa começava a ser discutido. Por curiosidade assisti e daí surgiu a ideia de trabalhar um projeto de pesquisa que abordasse os conceitos de “sexo”, gênero e orientação sexual. A situação vivida na escola e a fundamentação trazida pelo filme, e depois a obra A garota dinamarquesa, foram os grandes disparadores da pesquisa.

MT: Você tem apenas 15 anos, mas seu currículo lattes já consta diversas atividades, nas áreas da astronomia, informática, letras e linguística. De onde vem essa capacidade de transitar entre ciências exatas e humanas? Como equaciona as diferenças entre esses campos?

FP: Tive o privilégio de estudar em uma escola que me proporcionou o contato com diversas atividades de diferentes áreas. Passei um tempo na matemática, fiz parte da delegação brasileira em uma olimpíada na Índia, fui medalhista três vezes na Olimpíada Brasileira de Astronomia. Eu de fato, gostava de participar dessas atividades e aprendi muito com cada uma, até participar do Concurso de Cartas dos Correios o que me motivou para a escrita. Foi bom transitar em diferentes ciências, isso fortalece minha escolha hoje no campo das Ciências Humanas.

MT: O que é o TransEscola e como foi a criação e implantação desse projeto?

FP: O primeiro projeto desenvolvido foi Estudo sobre sexo, gênero e orientação sexual a partir da análise literária da obra A garota dinamarquesa, de David Ebershoff. Apresentei essa pesquisa em diversas feiras científicas pelo país e em março de 2018 o projeto ganhou o 1º Lugar em Ciências Humanas na FEBRACE – USP. Além disso, na USP também fui contemplado com uma bolsa ICJ/CNPq que me oportunizou ser orientado pelo Prof. Dr. Tiago Duque da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Sob orientação do Prof. Dr. Tiago Duque, desenvolvi o projeto A produção das identidades em ambiente escolar: experiências contemporâneas de jovens dissidentes de gênero e sexualidade nas escolas de Mato Grosso do Sul inspiradas na obra A Garota Dinamarquesa. O projeto tem como objetivo analisar experiências, consideradas positivas, pelos jovens de 18 a 25 anos, nas escolas de Mato Groso do Sul, através dos relatos que podem ser deixados no blog Transidentidades, mediante aceite dos termos. O blog foi criado como metodologia de pesquisa do projeto para recolher os relatos.

MT: De que maneira esse projeto tem impactado a sua vida, a vida de outras pessoas e o ambiente escolar?

FP: Desde que comecei a estudar gênero e sexualidade tenho ficado mais atento ao que acontece ao meu redor. Presenciar o que meu colega viveu na escola, me fez pensar sobre o sofrimento que muitos jovens enfrentam no dia a dia pelo simples fato de desafiarem as normas da sociedade quanto a sexualidade. A questão da segurança, da liberdade e do direito… São inúmeros os enfrentamentos diante do preconceito e da violência sempre presentes na vida desses jovens.

Quanto aos jovens, pude perceber nas apresentações que eles se sentiam representados de alguma maneira e felizes pelo assunto ser debatido, acredito que quanto mais debatermos, quanto mais enfrentarmos com coragem e conhecimento os preconceitos, maior será a chance da escola se transformar em um ambiente mais justo e democrático.

MT: Porque é importante discutir gênero e sexualidade nas escolas?

FP: Acredito que a discussão pode quebrar barreiras, pode fazer com que essas vidas ganhem visibilidade e respeito. É preciso conhecimento para enfrentar o preconceito e principalmente para garantir segurança e justiça.

MT: Vi que ao invés de tratar dos aspectos negativos, sua pesquisa procura por relatos positivos. Porque?

FP: Esse ponto foi levantado durante as orientações do Prof. Dr. Tiago Duque que me motivou a buscar pesquisas realizadas sobre gênero e sexualidade nas escolas. Acessei as pesquisas e percebi que não havia nada em relação às atitudes positivas diante das dissidências de gênero e sexualidade nas escolas, assim, decidimos por buscar essas experiências positivas, não para negar a violência do ambiente escolar, mas para acessar histórias que poderiam demonstrar o potencial acolhedor da escola.

MT: Poderia citar um relato do projeto que impactou o seu entendimento sobre essas questões?

FP: Os relatos de maneira geral me sensibilizaram muito, mas preciso confessar que a questão do uso do banheiro por identidade de gênero e o nome social na lista de chamada me fizeram pensar em como atitudes simples podem transformar vidas, melhorar o rendimento escolar e promover a sensação de acolhimento e respeito para esses jovens.

MT: Além do Tiago Duque que é seu orientador, vi que já manteve contato com referências como Berenice Bento e Amara Moira. Como é sua relação com os pesquisadores e seu orientador? Qual impacto desses pensadores na sua pesquisa?

FP: O Tiago é uma grande inspiração, o que ele faz por mim, enquanto estudante de ensino médio, compartilhando seu conhecimento, sendo atencioso e gentil em tudo que me ensina, me oportunizou o contato com a academia e fez minha pesquisa crescer como algo que me inspira fazer o mesmo. A Prof.ª Dr.ª Berenice Bento e a Prof.ª Dr.ª Amara Moira foram apresentadas a mim por ele. Foram encontros incríveis em que pude falar de minhas pesquisas e saí ainda mais contagiado com o conhecimento delas que é algo imensurável.

A pesquisa me levou a muitas experiências e pessoas, conheci a autora do livro O corpo da roupa, Letícia Lanz, nos encontramos em Curitiba e foi um momento importante para mim e para a pesquisa.

Também tive a oportunidade de contato com David Ebershoff, autor do livro A garota dinamarquesa. Nos tornamos grandes amigos e ele tem colaborado muito com minha trajetória enquanto pesquisador.

MT: Onde você pretende chegar com o TransEscola, quais resultados que já podem ser mensurados e quais seus projetos a curto e longo prazo?

FP: Os relatos deixados no TransEscola apresentaram resultados importantes para a pesquisa. Foi possível perceber a escola como um ambiente de potencial acolhimento das diferenças, quando se pode vivenciar a afetividade com segurança, ter o nome social respeitado nas provas e chamadas, ter direito ao uso do banheiro por identidade de gênero ou quando proporciona uma educação crítica e de respeito às diferenças e esses apontamentos foram importantes para pensar em uma ressignificação do ambiente escolar.

A próxima etapa será analisar as experiências de professores que desafiam as normas de gênero e sexualidade e seus enfrentamentos diante do preconceito, violências e mercado de trabalho.

MT: O Brasil tem se caracterizado nos últimos anos por uma retomada conservadora, na qual as questões de gênero e sexualidade são consideradas tabu, sendo até mesmo criminalizada. Como tem sido lidar com essa realidade? Você já sofreu algum tipo de constrangimento ou ameaça?

FP: Não é fácil lidar com essa realidade, quando se tem conhecimento sobre os desafios de jovens que enfrentam todos os dias, assim como não é fácil lidar com os índices alarmantes de violência com o discurso de violência e ódio. Mas lido com isso, fortalecendo minhas ideias de um mundo mais justo, com mais empatia. Tenho consciência do meu lugar de fala e de meus privilégios, mas quero através das pesquisas e estudos colaborar de alguma forma com uma transformação de comportamento que assegure os direitos mínimos de justiça e liberdade.

MT: Que mensagem de incentivo você poderia deixar para outros jovens como você que ainda não descobriram a pesquisa?

FP: Gostaria de dizer que o conhecimento transforma e liberta. Que temos muito a fazer e precisamos ter coragem para enfrentar aquilo que nos foi imposto como verdade. A pesquisa pode ser um caminho, uma vez que proporciona expor aquilo que se acredita, com fundamentação, além de fazer refletir e trabalhar por uma sociedade melhor do que temos feito até agora, como a luta por vidas possíveis.

Conheça mais sobre o projeto de Fabrício Pupo acessando: https://transidentidades.com.br

Por Marcelo de Troi

Jornalista, pesquisador do NUCUS – Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades, mestre em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia e doutorando no mesmo programa.

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