Sobre Analítica Quare, tema do livro de Fernando Luís de Morais

1) Para começar, poderia falar um pouco a respeito de você e de sua pesquisa?

Em linhas gerais, sou pesquisador, professor, tradutor e poeta. Sou licenciado em Letras (Português/Inglês), bacharel em Tradução (Francês/Italiano), especialista em Estudos Avançados de Língua Inglesa e mestre em Teoria e Estudos Literários pela UNESP de São José do Rio Preto. Atualmente, sou doutorando na mesma instituição, onde desenvolve a pesquisa “Literatura (d)e resistência: o grito aguerrido de escritores quare”, cujo objetivo é resgatar a voz silenciada de autores negros-gay. No referido instituto, atuo também como um dos professores da disciplina “Literatura, Gênero e Raça” e como membro do Grupo de Pesquisa Gênero e Raça. Tenho artigos e capítulos de livro publicados na área de Linguística e na área de Literatura, bem como poemas em diversas antologias. Sou poeta convidado da Revista Bem-Estar, de São José do Rio Preto, na qual divido espaço com outros escritores. Especificamente quanto à pesquisa que desenvolvo, interesso-me por investigar de que modo a interseccionalidade entabulada entre raça/etnia, gênero e classe em autores negros-gay repercute em suas produções literárias. A partir dos poemas de Thomas Grimes, da produção poética de Waldo Motta e dos escritos que compõem a coletânea In the Life: A Black Gay Anthology (2008), busco desbravar leituras que indiciem como os sujeitos negros-gay (pobres) foram – e ainda têm sido – secularmente subjugados ao anonimato e completamente invisibilizados não só enquanto escritores, mas enquanto sujeitos sociais e políticos.

2) Como poderíamos definir a teoria quare? Quais as similaridades e diferenças apresenta em relação à teoria queer?

Tenho tratado queer e quare não propriamente como teorias, mas, antes, enquanto analíticas. Na leitura que desenvolvo, explicito como o termo “teoria” pode ser um tanto ludibriante. Definir queer e quare é um empreendimento árduo, pois, tomados como categorias elásticas, são tão abertas, que a própria tentativa de definição converte-se em esforço quase contraproducente ou fracassado. De qualquer forma, correndo o risco de uma excessiva simplificação, pode-se dizer que a analítica quare emerge enquanto projeto disciplinar e intervencionista, pois funciona como um gesto político e transgressor de afirmação das diferenças e inscrição de corpos “estranhos” em cenários outros, suscitando novas narrativas, novas reescrituras da história das fronteiras. Em relação às convergências e divergências de ambas as linhas de pensamento, queer está quase exclusivamente voltado aos propósitos dos sujeitos hegemônicos (a saber homens cis, brancos, de classe média/alta), sempre levando em consideração uma conformação discursiva e identitária pretensamente universal. Tal constatação permite entrever uma incompletude da analítica queer, que “falha duplamente” quando submetida a uma investigação mais sistemática, porque negligencia a materialidade corporal e desatenta às contribuições substanciais, seja no campo intelectual, estético ou político, daqueles que não se encontram sob as rubricas “branco” e “classe elitizada” na luta contra a intolerância sexual e racial. A analítica quare, por sua vez, empreende uma ajustagem de foco ao prover uma maneira de criticar noções estáveis de identidade e, ao mesmo tempo, situar o conhecimento de raça e de classe. Recorrendo a uma releitura de queer, quare ressalta os meios que possibilitam lésbicas, bissexuais, gays e transgêneros alcançar conhecimento sexual e racial, além de demandar uma conjunção da práxis acadêmica com a práxis política. A analítica quare pode ser empregada em diferentes contextos. Dentro dos limites de minha pesquisa, utilizo-a como uma exegese literária para ler/teorizar corpos negros dissidentes. Apesar dessa aplicação bastante particular, evidentemente não descarto as potencialidades múltiplas propiciadas por esse novo terreno do conhecimento.

3) No subtítulo do seu livro, “como ler o humano” dá uma ideia de que se trata de uma teoria que pode contribuir com a análise da sociedade, do humano. Como você aborda essa questão no livro?

Ao escolher esse subtítulo, quis enfatizar, sobretudo, como o entendimento acerca da humanidade não pode ser restritivo. Explico-me: a partir do momento em que um sujeito atravessado por um nicho de entrecruzamentos muito específicos é eleito como representante absoluto da espécie humana, a concepção de humanidade torna-se prontamente contestável. As experiências e vivência de sujeitos cis-heterossexuais, brancos, elitizados encontram-se diametralmente opostas àquelas de sujeitos transexuais, negros e pobres, por exemplo. É nesse sentido que a analítica quare, que agora introduzo ao contexto brasileiro por meio de minhas formulações teóricas e pela tradução do texto do professor E. Patrick Johnson, ventila as diferentes possibilidades de vivências e experiências de outros sujeitos, até então relegados ao limbo, aos recintos periféricos. Os esforços empenhados na escrita deste livro são colocados no sentido de viabilizar uma conscientização quanto às várias possibilidades de existência, promovendo, por conseguinte, uma quebra de paradigmas, uma descontinuação de discriminações, sejam de gênero, de raça ou de classe social.

4) Há relações possíveis entre teoria quare e o conceito de interseccionalidade? Quais?

As identidades de raça/etnia, gênero e classe são categorias julgadas, ao longo do tempo, como esferas de experiências mutuamente excludentes. No entanto, as discriminações de raça/etnia, de gênero e de classe operadas em corpos negros, pobres, cuja identidade sexual é tida como dissidente não podem ser classificadas como instâncias estanques. Negros, gays e desvalidos de recursos não são, necessariamente, atingidos pelas mesmas adversidades que atingem aqueles que sustêm, a um só tempo, essas três identidades, atacadas obstinadamente pelo racismo, pela homofobia e pelo classismo. No lastro dessas colocações, a concepção de interseccionalidade – termo cunhado pela teórica e ativista norte-americana Kimberlé Williams Crenshaw – funciona como uma poderosa ferramenta analítica, leva-nos a pensar e perceber os múltiplos níveis de injustiça social – a dupla, tripla, quádrupla discriminação. O que Johnson faz ao propor os estudos quare é amplificar a aplicação dessa ferramenta – até então utilizada para pensar mulheres negras –, empregando-a na análise de corpos outros, corpos dissidentes do “regime do normal”. A lente da interseccionalidade, portanto, é indispensável aos estudos quare, pois permite que a sobreposição entre as identidades de raça/etnia, sexo, classe, sexualidade, entre outras, seja incorporada na análise estrutural da complexidade do mundo e das experiências humanas.

5) Como os pressupostos teóricos e suas análises podem contribuir para compreender as questões que envolve LGBT fobia e racismo no Brasil?

O arcabouço teórico que sustenta meus argumentos no livro é bastante abrangente, correndo em distintas direções. Afim de traçar os novos parâmetros elaborados pela analítica quare, senti, primeiramente, a necessidade de empreender uma digressão história que explorasse e evidenciasse, de alguma forma, as diferentes facetas posteriormente envolvidas na discussão do quare. Fundamentado nesse percurso, vali-me de uma gama de teóricos como Judith Butler, Annamarie Jagose, Eve Sedgwick, Michael Warner, Guacira Louro entre outros, que realçam a potência e as implicações da “teoria” queer. Traçar esse caminho mostrou-se produtivo, pois, oportunizou problematizar o status tão difundido e, no entanto, quase nunca debatido ou questionado, do termo “teoria” na expressão corrente “teoria queer”. Na esteira dos ensinamentos do sociólogo Zygmunt Bauman e Judith Butler, ressaltei um posicionamento coerente com as novas concepções de sujeito, cujo caráter é camaleônico, cambiante, performativo e, a partir dessa multiplicidade de posições de sujeito, trouxe à baila a analítica quare, proposta por E. Patrick Johnson. Ao analisar o poema “Through the fire” [Pelo fogo], do poeta estadunidense Thomas Grimes, evidenciei como essa linha de pensamento pode então ser operacionalizada como um horizonte de leitura que envolve procedimentos críticos e políticos. Em relação às contribuições aportadas pela analítica quare quanto a questões como trans/homofobia, racismo e classismo, não consigo encontrar palavras melhores do que as do próprio Johnson: “Porquanto não estou convencido de que os estudos, a teoria e o ativismo queer devam sofrer alguma alteração em breve, instituo os estudos quare como um projeto disciplinar intervencionista. Os estudos quare abordam as preocupações e necessidades de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros com questões de raça, sexo e classe bem como outras identidades e posições de sujeito. Ao mesmo tempo em que contribuem com os campos discursivos do conhecimento, também se comprometem a teorizar a prática da vida cotidiana. Porque existimos não só em corpos discursivos, mas também materiais, necessitamos de uma teoria que fale a essa realidade. Por certo, os estudos quare podem dar nova vida aos nossos estratagemas de sobrevivência ‘mortos’ (ou mortíferos).”

6) A capa do seu livro traz uma pintura de uma bicha negra que, na imagem, pode ser compreendida como afeminada. Qual a relação entre esse sujeito gay, afeminado, negro e suas análises?

Primeiramente, gostaria de expressar meu contentamento e encanto pelo trabalho de Paul Richmond, artista visual e ativista estadunidense que assina a pintura reproduzida na capa do livro. A imagem da “bixa-preta” – como prefiro grafar/dizer – afeminada é muito significativa, visto que funciona como epítome das propostas da analítica quare. A ilustração, os estudos quare e minhas análises, tomados separadamente ou em conjunto, testemunham a impossibilidade de um hiato entre o terreno racialmente marcado e o da abjeção. Assim, parece justo argumentar que tanto a analítica quare quanto as análises e a imagem interrogam e conturbam noções aparentemente estáveis de sexualidade, gênero, branquidade e privilégio branco. Ao mobilizar as tensões suscitadas entre distintas instâncias identificadoras e idealizar um projeto cujo objetivo cardinal é uma irrestrita inclusividade, Johnson, Richmond e eu estamos reivindicando a legitimação de um “corpo político” que não reduza a identidade a um monólito indivisível alicerçado a uma compreensão essencialista de raça e gênero, nem elida a materialidade dos corpos – em suas mais distintas performances –, reiteradamente convertidos em um local de trauma, onde coerção e violência racistas e/ou sexistas e/ou homo/transfóbicas são operadas.

7) Você tem escrito muitas poesias. Sobre o que elas tratam? Você pretende lançar algum livro de poemas?

Em minha seção biográfica na obra Antologia poética: festival brasileiro de novos poetas 2020, organizada por Maroel Bispo e publicada pela Edições & Publicações, sustentei que “escrevo para existir absolutamente para o outro. Vejo, na (pele da) palavra, um poder redentor, catártico, de purgação do que é estranho à essência, do que corrompe. Minha escrita, ao extenuar o silêncio, é um grito aguerrido […] Desequilibrar o chão sobre o qual estamos confortavelmente assentados, eis o meu propósito maior ao escrever. Escrever, para mim, é meu ato libertador mais perigoso…”. A concepção dos meus poemas é baseada justamente na conturbação provocada pelos discursos no domínio da arte literária. Busco colocar em tela alguns de meus questionamentos relativos a distintos aspectos que perpassam a vida social, mas, especialmente, discuto o sujeito em suas interações, seja com o Outro, seja com a sociedade, seja consigo mesmo e, portanto, com suas histórias, traumas, angústias e dores. O momento atual tem me levado a refletir sobre muitas coisas, escrutinar certas visões sob diferentes perspectivas, e isso me propiciou não só rascunhar bastantes dos meus textos, mas também desenvolver e lapidar minha escrita. Escrever é, afinal, um exercício que demanda tempo, ponderação, e, sobretudo, dedicação. Em outros termos, é uma luta corporal e constante com palavras, ritmos, rimas, (quebras de) sintaxe. Sobre a eventualidade de uma possível publicação, um de meus projetos para o próximo ano é justamente lançar um livro que compile meus poemas já publicados em dispersas antologias em conjunto com uma série de outros ainda inéditos.

Por Leonardo Coelho e Gilmaro Nogueira

Link para o livro na Queer Livros

https://www.queerlivros.com.br/analitica-quare-como-ler-o-humano

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